terça-feira, 16 de abril de 2013

ENCURRALADO


ENCURRALADO
Mesmo depois de cinco anos muitas dúvidas ainda pairavam sobre minha cabeça. Estava ali, defunto, sentado naquele sofá duro, mas o único lugar meu que fazia, mesmo parcialmente, me sentir em casa. Ela tomava banho e insistentemente cantava alta aquela música irritante, sertanejo universitário, sei lá, era só o que escutava, quer dizer, escutava e cantava tudo que não fazia sentido.  Eu lia Memórias Póstumas de Brás Cubas, era uma sexta, na segunda pela manhã daria uma aula de literatura. Isso já deveria ser sabido, porque passei cinco anos lendo livros, fazendo análise literária, estudando biografias e mesmo assim tinha muitas dúvidas. Um exemplo claro era se algum aluno perguntasse:
- Professor porque no nome tem póstumas?
Não saberia responder. Todavia, o martírio mesmo, era ela. Inconveniente, espaçosa, totalmente sem bom senso e muito acima do peso, alias eu era o único magro. Odiava tanto ela depois desses anos que tudo fazia mal, dava náuseas. Sempre quando estava lendo ela achava algum assunto, como sobre sua academia, os lucros, os imóveis que seu pai havia comprado, tudo isso me deixava pra baixo e voltava a perceber o pouco espaço que resumiam-me.
- “Não tenho nada, se não fosse ela não teria nem onde morar”.
Fazia-me de legado balançando a cabeça que sim com um sorriso amarelo no rosto. Ludibriado na leitura, minha cabeça, na verdade, pensava como a cabeça de Brás. Essa sim era tudo de ruim não apenas coxa. Tomava banho, sentava no sofá, não perdia a novela por nada nesse mundo e tinha uma mania que irritava muito. Olhava às vezes e de repente perguntava:
- O que foi?
Levantando a cabeça pra cima.
Simplesmente horrível.
No outro dia tínhamos uma festa. Era de um dos amigos do pai dela, sei lá, acho que era deputado.
Seus pais me odiavam. Uma por ser um pobretão sem pai nem mãe e sem êra nem bêra e outra por ser professor. Sentada com um iogurte na mão e com a boca toda lambuzada disse:
- Olha só! Amanhã sabes que temos um jantar com um dos amigos do papai né?
- Toda vez que alguém importante vir cumprimentar vou apertar teu braço. Tá bom?
Como se eu não tivesse educação. Poxa vida, sou um professor, sujeito que deveria ser mais respeitado que o presidente e meu braço que sofrerá cutucões quando alguém “importante” vier me cumprimentar.  
Foram as últimas palavras dirigidas a mim naquela noite. E eu ali sentado, lendo meu livro. Depois da novela foi dormir. Conseguia escutar o ronco da sala. Mais ou menos a uma da manhã eu fui e só pensava como seria minha vida se estivesse solteiro. Tenho um amigo o Dionísio. Amigo de infância se formou em engenharia civil. Hoje trabalha para uma empresa que já lhe deu promoções esse ano. Passou de estagiário para engenheiro e de engenheiro para chefe de departamento. Fazia festa todo dia, mulheres, bebidas, farra, um paraíso na verdade. Isso era o que mais me incomodava. Professor ganha pouco e não tem nenhuma perspectiva de crescimento. Comecei assim e morrerei ganhando essa mesma miséria e tendo esse mesmo descrédito por parte da sociedade.
 Dormi mal como sempre pelo ronco e pelo pouco espaço na cama. O outro dia passei todo preparando minhas aulas e ela na academia. Lia Dom Casmurro. Outro enigma. E se um aluno perguntasse:
- Professor a Capitu traiu ou não traiu?
Outra pergunta sem resposta. E isso me deixava triste e profundamente vulnerável. Para que serviram tantas leituras de Badler, Goethe, Balzac, Dostoievski se muitas perguntas não tinham resposta. Sentia-me como Naziazeno de Os ratos, só que com uma diferença ao invés de os ratos comerem o dinheiro sentia como se comessem meu cérebro e quanto mais lia com menos informação ficava. As horas se passaram e escutei a escada. Merda! Vem ela. Entrou em casa da mesma forma de todos os dias. Tirou os tênis na porta e assim foi fazendo seu rastro de roupa. E antes de chegar ao banheiro já estava nua. E deixava a mostra aquele corpo “exuberante”. Com uma bunda que mais parecia uma peneira de tanta celulite. Gritou da porta do banheiro:
- Arrume-se já são cinco horas da tarde as seis temos o jantar.
Preparei minha roupa, uma qualquer, porque não fazia questão de ir naquela porcaria de jantar. Depois do banho estava me vestindo. Ela também. Olhou e proferiu aquilo que me irritava muito:
- O que foi?
Levantando a cabeça pra cima
A vontade que eu tinha era de responder, eu te odeio sua gorda burra, insolente, desgraçada, mas... nem respondia mais. Mesmo me irritando já estava acostumado.
No caminho não trocamos uma palavra. Apenas olhava a paisagem. Chegando ao tal jantar a primeira coisa que ela me falou foi:
- Te disse para vir de terno.
Eu não dei a menor importância, não escutava direito mais se falava ou não. Sentamos com meu sogro e sogra em uma mesa bem no centro do salão de festas. Ocuparam quase toda mesa, eu fiquei espremido no cantinho deixado, como acontecia em todos os lugares. Quando o primeiro se aproximou recebi um cutucão no braço:
- Esse é o desembargador.  Me disse baixinho.
Levantei cumprimentei sentei-me novamente. E mesmo na insignificância das palavras aquilo me inquietou e comecei a olhar para os lados. E quando me apresentavam para alguém ninguém era cutucado. Não sei, na verdade, se era maluquice ou se tinha algum fundamento, porém a minha importância naquela festa analisando pelos cutucões, era nenhuma. Sinceramente não sei o porquê me incomodei, isso já era normal. Era rejeitado e humilhado pela sociedade, pela família dela, pelos pais dos alunos, por todos.
Voltamos pra casa, dormimos e naquela noite foi a primeira vez que pensei nisso. Pensei ter ficado inato ao sexo, porque há um ano não sentia nada nem um tipo de tesão. E isso que a última vez tomei umas doze cervejas para transar, mas enfim...
No domingo almoçamos e após ela sentou no sofá. Fiquei ali olhando alguns manuais didáticos. Como sempre entrincheirado no pouco espaço que era meu. Dormimos sem sequer trocarmos um: “boa noite!”.
Na segunda acordamos e fui trabalhar. No ônibus lotado fiquei quieto olhando pela janela. Na noite passada foi o “ápice”. Alem de roncar a noite toda e ocupar oitenta por cento da cama tivemos uma briga. Jogou-me na cara o que eu já sabia e todos sabiam, mas nunca havia escutado.
- Você não tem nada seu professorzinho de merda miserável. Se não morasse comigo, moraria em uma pensão ou embaixo da ponte!
Juro, nunca senti tanta raiva. Pensei em fazer como o jovem Werther e me matar, mas werther se matou por amor e eu tirar minha vida por ela; jamais. Pensei em matá-la, mas como...
Depois de quase uma hora entrincheirado no pouco espaço no banco do ônibus, cheguei à escola. Tudo normal. Gritos, correrias, enfim o cotidiano normal. Na sala dos professores pairava o mesmo clima tenso, desagradável e desmotivador o que me piorava cada minuto mais. Trabalhar em escola pública exige muito do professor para com os alunos, porém o pior mesmo é a sala dos professores. Não param um minuto de falar nos alunos, nos baixos salários e tudo negro que existe na vida escolar, parece quando se está na frente do I.M.L esperando para saber se é seu filho o defunto. Tu não sabes se diz um bom dia, ou meus pêsames.
Entrei na sala e quando comecei a me preparar para iniciar a aula ouvi um cochicho. Pedi silêncio, mas eles não paravam então perguntei o que havia acontecido. Um dos meninos me disse:
- Professor o Dilson está com uma arma!
Caminhei até a classe dele e reconheci era uma arma calibre trinta e oito. Com cano enferrujado, mas uma arma potente que podia matar. Estava ali a minha chance. Fiquei uns trinta segundos sem dizer nada. Imaginava o que teria feito Bento Santiago com Capitu se tivesse uma arma em suas mãos. Pensei no tiro entrando na cabeça e acabando com os problemas de Bentinho e os meus. Voltei ao mundo real. Um barulho ensurdecedor dos meus alunos gritando porque havia Jeferson pego a arma. Imediatamente chamei a diretora e relatei o fato. Ela ligou para polícia. No turbilhão dos acontecimentos acabaram esquecendo a arma que por coincidência, ou não, não sei, veio parar em minhas mãos. O correto seria devolver, mas aqueles pensamentos de me livrar e a raiva não me deixavam outra alternativa, fiquei com a arma. Voltei o caminho todo normalmente, calado apenas olhando para o nada. A diferença era que o pensamento estava em enfiar uma bala bem na cabeça dela.
Cheguei ao prédio às 12h30min como os outros dias para almoçar, subi as escadas lentamente e parei a porta. Pensei em tudo na minha vida, a infância difícil, a profissão medíocre e o casamento ou “junção” com aquele demônio o pouco espaço na sociedade. Tentei olhar pelo olho mágico. Não vi nada. Toquei a companhia, estava totalmente fora de mim. Que burrice mesmo com a chave toquei a maldita companhia. Pensei, ela abre a porta e eu atiro sem pensar e acabo com tudo. Ela veio olhou e abriu:
- Ah é você. Pensei que tivesse chave. Não esquece a cabeça porque tá grudada.
Sentei no sofá abri a mochila e peguei a arma. Apavorada com olhos esbugalhados olhando pra mim disse:
- O que quer com essa arma?
Falei:
- Nada! Não se preocupe não vou te fazer mal.
Olhando incessantemente para aquela arma engatilhei-a. E mais uma vez olhou-me e disse:
- Largue essa arma e fale alguma coisa homem.
Lentamente no meu espacinho, olhei me Levantando do sofá:
- Calma. Tivemos um ponto positivo no nosso relacionamento.
Ela perguntou-me.
- Qual? O que você está falando?
- “Não tivemos filho, não transmitimos a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.
        RODRIGO BARTZ                                  

Nenhum comentário:

Postar um comentário