Meu amigo (des)conhecido
Era no ano de 2058 o mundo havia mudado. As
pessoas não conversavam mais e sequer liam livros, porque eram proibidos, quer
dizer, conversar até podiam, contudo livros em forma física nem pensar. Resumos
e E-books tomaram conta do planeta terra. Mas faltava alguma coisa para aquela
menina chamada Sofia.
Sofia era uma menina que tinha em torno de 12
anos e impressionava-se com as histórias contadas pelo seu pai. O pai tinha 46 e
vivera em uma época totalmente diferente. Mas como nostalgia guardava alguns
utensílios em uma caixa branca que ficava no porão.
Muitas vezes a menina perguntava:
- Pai eu posso abrir e olhar o que tem aquela
caixa?
A resposta era sempre a mesma:
- Pode filha, mas provavelmente não encontrará
nada semelhante com o que se tem hoje, porem mesmo na escuridão do porão uma
certeza eu tenho, você encontrará a luz.
Mas como toda criança e suas curiosidades
Sofia não se conteve. Um dia pela tarde cansada de ler somente os resumos que
agora era o que se tinha, e podia ler, resolveu buscar na caixa um livro, esse
objeto que seu pai tanto falava e canonizava.
O primeiro sentimento foi um frio na barriga.
E se esse tal livro fosse bravo ou mordesse, ou sei lá, falasse coisas que ela
não gostaria de ouvir. Porque em uma das conversas que escutara atrás da porta
ouviu seu pai falando a um amigo que o verdadeiro livro era sabedor de tudo.
Que encontrávamos em um livro conhecimento infindável.
O primeiro passo foi tenso, mas a vontade de
olhar, tocar, conhecer esse objeto era muito, mas muito maior. Ao abrir a caixa
deu uma gargalhada daquelas do fundo da alma, verdadeiras. Não tinha nada de
mais, somente uma espécie de folhas envoltas por uma capa consistente, dura.
Pegou o na mão tirou o pó e ali estava o
título, Fahrenheit 451, romance
datado de 1953 que seu pai guardava como um verdadeiro tesouro. Ao abri-lo
muitas letras juntas formando frases e o mais incrível de tudo não era touch
screen. Encantada começou a ler a primeira página, o resumo como estava
acostumada, entretanto nesse formato era uma frase mais incrível que a outra. O
romance contava uma história longínqua em que os bombeiros ao invés de
protegerem as casas do fogo queimavam livros. Impressionada, Sofia escuta uma
voz. Assustada pergunta:
- Quem é?
Claro que era uma pergunta retórica, pois não
queria respostas, porem o inevitável acontece. O livro ganha voz:
- Sou eu Ray Bradbury.
A menina tremula de medo pergunta:
- Quem?
- Eu Ray Bradbury o autor do livro que
segura.
- Você
fala?
- Falar não, dou voz ao livro e ele faz muito
mais que isso. Ensina, faz as pessoas chorarem, alegrar-se e possui muito
conhecimento.
- Conte-me mais, por favor.
Claro. Eu escrevi esse livro no século
passado, todavia usei apenas verossimilhança para mostrar, na verdade como as
pessoas ficam alienadas sem livros.
- O que é verossimilhança e alienado?
Pergunta Sofia.
- Não acredito. Com toda essa tecnologia
ainda não sabe o que é verossimilhança e alienado. Bem, verossimilhança, posso
dizer de uma maneira simples que é a proximidade com a realidade e alienado é
estar sem estar, não saber, deixar-se levar.
- Ah tá.
Como dizia nunca pensei que essa era chegasse
literalmente.
- O que é literalmente?
- Literalmente é concreto, real. Por favor,
não pergunte mais, senão pararemos muitas vezes. Pela lógica entenderá. Como
dizia, na minha história as pessoas não podiam ler porque era proibido e os
bombeiros cassavam as pessoas e queimavam seus livros. Mas as pessoas que
tinham sede de conhecimento me decoravam e fugiam criando cidades inteiras de
pessoas livros.
- Como assim?
Sim, pessoas que eram reconhecidas por nomes de
livros, pois haviam decorado determinada obra e recitavam para os demais cidadãos
para que nunca se perdesse.
- Sério? Não acredito?
- Olha, não quero acabar a nossa conversa,
mas não está na hora de carregar sua bateria?
- Não, eu não tenho bateria. Duro o tempo
todo, uma vida toda.
- Que legal! Tá, mas como faço para passar
para o próximo link?
- Não eu não tenho links tenho apenas essas
folhas que você vê e para continuar basta molhar o dedo na língua, folhear e
pronto, continuaremos.
- Ah tá. Vou continuar minha leitura. Posso
fazer outra pergunta?
- Pode.
- Mas como é que você dura tanto tempo?
Porque escreveu esse livro no século passado, se fosse como os livros em E-books
que temos hoje que todos chamam de obra de arte não duraria um ano.
- Uma coisa posso dizer com segurança Sofia.
Esses que são chamados de arte e não duram um ano, não são arte. Não passam, na
verdade, de um amontoado de palavras que não inquieta, não deixa dúvidas e, por
isso não são duradouros. Isso posso lhe provar com diversos exemplos que se
encontrares outros admiradores como teu pai veras irmãos meus, inclusive muitos
mais velhos. Agora eu posso te fazer uma pergunta?
- Porque vocês não criam cidades como a
criada em minha história?
- A senhor Ray, não seriam possíveis, logo as
autoridades ficariam sabendo, meus colegas também e eu além de ser presa me
tornaria piada na escola. Porque a vontade deles, das autoridades, e que
fiquemos assim, como o senhor disse antes, aquela palavra; alienados.
- Mas como assim? Vocês não leem na escola?
- Não, quer dizer, até lemos, porem somente
resumos, temos muitas coisas para olhar e escutar e não temos mais paciência. E
para que ler um montão de horas se em poucos minutos conseguimos saber o que
vocês querem dizer nos resumos.
- Aí é que está o problema. O verdadeiro
livro, arte na sua essência não nos dá respostas. Ele nos deixa com vontade de
querer mais como te disse antes.
- Como sem respostas? Sem respostas não tem
graça.
- Tente que você vai ver a magia que é Sofia.
- Acho que está na hora de eu sair aqui do
porão. Como faço para saber onde parei de ler você, tenho que copiar, colar,
fazer download ou colocar em meus favoritos?
- Não, basta pegar uma folha estreita que
está no fundo da caixa.
- Como se chama essa folha?
- Marca páginas. E amanhã você volta?
- Com certeza. Até amanhã
- Foi um prazer Sofia, estarei esperando
você.
A menina hipnotizada sobe para sala onde está
seu pai sentado, olhando para um quadro, pensando alto, como que se conversasse
sozinho. A filha eufórica o indaga.
- Pai, pai, eu fui lá embaixo na sua caixa
peguei um livro e ele falou comigo. Que impressionante pai os livros falam o
senhor tinha razão, os livros são incríveis.
- Sim, acredito, pois tem toda a razão. Eu
tinha absoluta certeza de que um dia encontraria a porta de saída de sua
caverna e libertar-se-ia da condição de escuridão de seu conhecimento. Agora já
sabe filha o porão estará sempre aberto, volte quando quiser.
Rodrigo Bartz
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