terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Sobre brasileiros e argentinos

Sobre brasileiros e argentinos

Carlinhos tinha tamanho. Disso ninguém duvidava. Diziam que nasceu pronto, falando e sendo o dono do berçário. Lenda ou não, o fato era que se não foi o capitão do berçário, com certeza o era do colégio. Andava como um imperador romano pelos corredores, espaços apertados e campos abertos do educandário, sempre cercado por seus generais dispostos a darem a vida por seu imperador, como se fosse necessário. Por si só ele metia medo em todo mundo, mas, como parasitas, o “trio pavor” andava a sua volta sugando e aproveitando-se da essência de poder que dele brotava.
         Eu? Andava como um camponês, apenas mais um, não queria chamar a atenção. Provavelmente, metade da minha turma não se lembraria de mim quando fôssemos velhos trabalhadores, casados, com filhos e gordos sedentários. Contudo, como dizem, tudo que é bom um dia acaba e, naquela quarta-feira, meu mundo sofreu uma mudança brusca de direção. O que eu estava fazendo não recordo e as vagas recordações podem ser peças engendradas pela minha cabeça, sim, ultimamente não consigo mais confiar em mim mesmo. A idade, o tempo, ambos implacáveis. Enfim, caminhava, pensando na figurinha do Bebeto que faltava para completar o álbum da Copa do Mundo de 1990. Havia obtido ela após meia-hora de disputas jogando bafo. Estava tão eufórico com a minha conquista, que não notei o olhar de águia que Carlinhos disparou para minha figurinha. Só senti o solavanco no ombro e me vi cercado pela trupe do terror.
- Bebeto? – indagou apontando os olhos cobiçosos para o pequeno papel em minhas mãos. Acenei positivamente, qualquer movimento brusco poderia desencadear uma reação bruta – Preciso dela. - E estendeu a mão para pegá-la.
         O bom senso dizia que eu deveria entregá-la, afinal, era apenas uma figurinha. Mas um feixe de bravura riscou meu pensamento, uma raiva assassina tomou os meus olhos e por um instante Carlinhos recuou. Não estava preparado para aquele olhar. Mais tarde, disseram-me que não foi o olhar que o assustou, e sim o meu sonoro e libertador NÃO! Lembro dos olhares incrédulos, eu estava na arena diante do imperador e o desafiava impiedosamente. Eu era o senhor do tempo naqueles poucos segundos que antecederam o tiro que me derrubou de meu voo solo:
- Na saída.
            Duas palavras, sete letras. E eu estava imóvel no meio do pátio, como um condenado esperando a forca. Os olhares esperançosos transformaram-se em piedosos. Lembro de alguns tapinhas nas costas e palavras como “ele vai desistir”, “valeu a tentativa”, “por uma figurinha?”, “lamento”. O sinal soou e minha barriga revirava. Lágrimas queriam brotar dos meus olhos, mas impedia-as. Não havia de ocorrer nada.
 Ao entrar na sala, fui fuzilado pelo olhar perseguidor de Carlinhos. Sentei na minha classe e convenci-me que iria acontecer algo. Sentimento reforçado por um bilhete, que passou de mão em mão e quando abri dizia: “no bar do Zaza”. O bar do Zaza era o local onde as vítimas de Carlinhos eram acuadas e sofriam as devidas punições. Eu iria morrer.
 Da aula pouco lembro. A professora falou qualquer coisa sobre a importância de saber o tipo de clima do Cerrado e outras coisas que meu cérebro não assimilava. Estava em modo de sobrevivência, e todos os meus esforços seriam utilizados para isso. Não tinha como fugir, o bar do Zaza era meu caminho para casa. Enfrentá-lo era fora de questão, seria como um rato enfrentar um gato em ambiente fechado. A vantagem do rato era que o gato acabava com o serviço de forma rápida e eficaz, Carlinhos não. Caniggia deu um peteleco em minha orelha e eu olhei o furioso, mas já sem forças para reagir. E falou:
- Pô! Fala com ele, explica a situação, mostra para ele que você se importa, que batalhou para conseguir essa figurinha. Ele vai compreender, não vai espancar você cegamente. Se fosse você falaria com ele firme e decidido, nem brandamente, nem rude.
            Caniggia tinha esse apelido devido aos cabelos, compridos e sempre com uma faixa, igual ao craque argentino. Apesar de garantir que sim, seu futebol era medonho e não lembrava em nada o do xará hermano. Entretanto, a ideia agradava. Uma coragem súbita tomou conta de mim. Tive vontade de olhar para ele, mas refutei a ideia prontamente, havia coragem, mas não tanta assim.
          Bateu o sinal e todos correram como os romanos que urravam nas arquibancadas do coliseu, queriam ver sangue e o espetáculo medonho que se anunciava. Caminhei 10 metros e uma mão parou meus movimentos. Era Carlinhos, enorme e solene na minha frente. Olhou-me de cima a baixo e limitou-se a dizer:
- Você devia ter dado.
            Antes de ele desferir o golpe, gritei:
- Ei! A figurinha é minha, eu ganhei, eu lutei para conseguir. Você gostaria que eu pegasse uma figurinha que fosse sua? Sei que você é grande, mas isso não lhe dá o direito de fazer o que bem entender com as pessoas. A figurinha é minha e não vou lhe dar. Se preferir, posso emprestar outra, mas essa definitivamente não!
        Virei as costas, livre, forte como nunca, eu estava livre, todos estavam livres, havia subjugado o “imperador”. Sorri o sorriso dos vencedores, ainda vi a cara de admiração dos presentes. Um raio de Sol cegou um rapaz que olhava para mim devotadamente e eu senti o impacto. Meu crânio tremeu e por um instante jurei que a Terra tremera junto. Virei a tempo de ver outro golpe estourar em meu nariz e o mundo ficar escuro feito noite.
           Acordei com o Caniggia na minha frente segurando um pano que jurei ser minha camisa nova contra o meu nariz que sangrava. Olhei para ele através de um dos olhos que estava aberto e limitei a perguntar:
- E aí?
- Para alguma coisa serviu, o Carlinhos falou que a partir de hoje ele vai sentar na frente em sala de aula. Ele disse que se sentiu ofendido pelo seu discurso e viu como a falta de estudo é prejudicial porque não conseguiu responder a altura.

            E assim eu fiquei com um nariz quebrado, um olho roxo, uma camisa ensopada de sangue e tive que aguentar um Carlinhos estudioso do meu lado o resto do ano. Mas o álbum eu completei, uma figurinha do Bebeto com dois pingos de sangue na altura do pescoço. Na copa, Bebeto não fez nada, Cannigia fez um gol e a seleção brasileira caiu fora. Onde ficou aquele álbum?

3 comentários:

  1. Já no início, a forma como delineia o antagonista utilizando às memórias do narrador/protagonista, parece ser bem mais do que uma ideia do que está para acontecer. Ali, logo no segundo parágrafo, com a utilização do "eu", o leitor (pelo menos eu fiquei) fica tomado por uma consciência de espera, onde o tão temido imperador pode aparecer a qualquer momento no enredo. E com esse mecanismo, costurando-se aos poucos a analogias físicas e históricas de uma copa acontecida, podemos notar (mesmo que não tivesse dito) algumas reminiscências de um homem contando sobre o dia em que, quando menino, completou sua coleção. Mesmo lutando por um Bebeto, inútil como ele. Mesmo apanhando de um Cannigia, mais poderoso do que Bebeto. Mas com o coração aliviado em ter pelo menos dado o sangue para completar o seu time de papel: o álbum da copa. Isso sem falar na maneira moderna (períodos curtos, o que torna o texto agradável, menos cansativo) e do grande poder imagético que teve ao emprestar a voz a essa cria sua, a esse personagem seu. Parabéns, gostei muito!!!!
    Perdão pela discurso excessivo, mas foi como entendi o texto! ;)

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  2. Muito obrigado pelas palavras! Análise interessante e bem elaborada.

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  3. Muito obrigado pelas palavras! Análise interessante e bem elaborada.

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