quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Prorrogação

Prorrogação

Meu pai abriu o jornal naquele domingo, como fazia todos os dias em que estava em casa, sempre ao lado do velho fogão à lenha.  Estampada na capa, estava a chamada para o clássico Gre-Nal. Éramos lideres do campeonato, invictos. Eles eram os atuais campeões brasileiros e da Copa do Brasil. Jogão – e bem na casa deles – com perspectiva de estádio lotado, e melhor, nós iríamos também. Minha mãe torceu a boca para isso. Meu pai não deveria sair em um dia como aquele, mas teimoso, foi incisivo ao logo dizer:  “vamos eu e o guri!” Eu tinha meus quinze anos de idade e já havia ido a alguns jogos no Beira-Rio. Meus pais achavam perigoso, portanto só ia junto com um responsável, no caso, meu pai. Nunca pude ir com meus amigos, queria ir com eles...
Morávamos em uma casa confortável no Santa Fé. Morava em frente a uma pracinha onde passava as tardes jogando bola e, às vezes, fumando cigarro escondido – pequeno delito da juventude, uma aventura em pequenas baforadas. Estudava perto de casa e aquela rotina me era boa. Meu pai , antigamente, jogava bola comigo naquela praça, íamos todos os dias, mas hoje não é mais possível. Como nos afastamos de nossos pais! O almoço foi feito pela minha mãe, extremamente contrariada. Gre-Nal por si só já era perigoso, ainda mais no Olímpico. Seriam 40000 contra uns 4000. Na verdade, eram uns 40000 contra uns 10000, mas isso não fazia diferença. Mamãe não entendia que o sonho de todo moleque da vila era ir num Gre-Nal, ainda mais na casa do adversário. A tensão, o desafogo quando o time marca, os gritos. O domingo estava com uma eletricidade no ar, um algo mais que só quem vive essa expectativa sabe entender.  
Os jornais aconselhavam aos torcedores do Inter a chegarem cedo. O pai estipulou que saíssemos às 12 horas e 15 minutos. Ele pegou sua almofada com o símbolo do saci, eu peguei um jornal. Fomos para o carro. Estava chovendo e mamãe deu um tchau que mais parecia uma reprimenda nele.  Eu estava eufórico, sentei no banco do carona e me senti um homem pleno. Éramos eu e meu pai, como dois cavalheiros destemidos caminhando para a batalha. Ligamos o rádio e o assunto era o Gre-Nal. Como parar a dupla de ataque: Fabiano e Christian? E a estreia do badalado Beto? O Grêmio era um time milionário e consagrado, o Inter era a febre do momento, havíamos feito quase todos os pontos possíveis nas primeiras rodadas do Brasileiro. Discutia com ele as táticas e a melhor equipe a colocar em campo e ele surpreendentemente concordava e discutia muito. Naqueles dias, isso não era comum, meu pai não falava muito e por mais que eu desejasse passar a imagem de homem feito, sentia muita falta de nossas conversas.  Mas, no fundo, eu entendia seus motivos.
Chegamos ao estádio cedo, mas já existia movimentação. Colocamos nossos casacos para escondermos nossas camisas. Virei para pegar os guarda-chuvas no banco de trás e ele interrompeu- me, questionou qual era a graça de olhar jogo com guarda-chuva, torcedor de verdade não se importava em se molhar. Eu sorri levemente, na verdade queria gargalhar. Olhar jogo na chuva com meu pai era bom demais. Saímos como heróis em meio à chuva. Gremistas passavam gritando, grupos formavam-se em volta das carrocinhas e bares. Era o Gre-Nal ganhando vida. Capas de chuva sendo vendidas. Desviei o olhar dele quando o moço nos abordou, não queria capa, meu pai sorriu sozinho e sem olhar para mim balbuciou que aquele dia não teríamos capa. Fomos direto para a zona da torcida visitante e aos poucos o cenário mudava, ao invés do azul e preto, predominavam o marrom escuro dos militares, e suas caras pouco amistosas de estarem trabalhando em um domingo de chuva, e somente algum leve vestígio do vermelho podiam ser vistos. Os ingressos haviam sido comprados previamente por ele. Fomos direto para a entrada. Ele tinha posto a carteira e documentos envoltos em um saco plástico, teve dificuldades para tirar os dois ingressos, fiz menção de auxiliá-lo e ele prontamente acenou negativamente com uma das mãos. Um grupo de torcedores gremistas passava ao fundo gritando palavras de ordem e dirigindo todos os tipos de “elogios” para nós colorados.  Entramos no estádio e meu pai fez sinal para que fôssemos à copa. Ele comprou uma cerveja e um refrigerante para mim. Tentei protestar contra o fato de ele comprar a tal cerveja, ele sabia que não deveria tomar. Ele olhou para mim e limitou-se a perguntar se havíamos vindo a um jogo ou a uma peça de teatro da escola. Eu sorri, e afirmei que era em um jogo. Fomos para a área coberta destinada a torcida do Inter. Ainda havia espaço, pois era cedo, e as torcidas organizadas não haviam chegado.
Sentados naquele mármore frio, que ficava ainda mais gelado por ser inverno,  aguardando pelo início da partida, conversamos intensamente. Ele me contou dos jogos que presenciou, das vindas ao Olímpico, das algazarras que fazia, de ter visto o Inter conquistar o tricampeonato brasileiro, aquilo sim era time. Contou-me das vezes que veio foi ao Beira-Rio com sua antiga namorada, a qual nunca havia comentado antes, do dia em que conheceu minha mãe. Olhou-me nos olhos através de seus óculos, ele estava magro, um resquício do homem que havia sido um dia. Falou-me que a vida era a vida, que tentar entendê-la é como escolher o próprio presente. Que o divertido de tudo está na incerteza, no fato de que não existe fórmula mágica, não há caminho melhor, há apenas vida e que eu deveria vivê-la da melhor maneira possível. Era um misto de alegria e tristeza, meus olhos marejaram, mas eu segurei as lágrimas. Olhei em volta e o local já estava cheio, havíamos conversado por duas horas, não lembrava a última vez que havia feito isso com ele, ou melhor, não lembrava se algum dia havia feito. Ele levantou e pediu para que eu guardasse seu lugar. Saiu a caminhar, como um espectro no meio da multidão. Por quê? Minha mãe perguntava-se constantemente isso. Tanto eu quanto ela nunca descobrimos a resposta.
Ele voltou, a chuva cessou e o jogo iniciou. Eram quatro minutos de jogo quando Christian aparou divinamente o cruzamento do paraguaio Enciso e abriu os trabalhos. Gol do Inter. Explosão da torcida. Nos abraçamos fortemente e lembrei dos abraços que dávamos anos antes, quando correr para abraçá-lo após um gol feito no tanque de lavar roupa era o fato mais natural do mundo. Uma briga teve início no campo, e de repente tínhamos dois jogadores expulsos de cada lado. Ele pulava, vibrava, xingava, vivia. Já fazia algum tempo que ele não exercitava o exercício da vida. Por um instante eu esqueci do jogo, ignorei o gol feito por Fabiano apenas para admirar a intensidade com que ele bebia daquele momento. Será que ele que me levou no jogo ou eu que o levei? Ele que quis ficar na chuva, que pulava, que vibrava, que xingava. Pensei que nada podia ser mais justo, ele me levou para passear nessa existência chamada vida, o que era um jogo para mim. Sim, aquele não era mais o meu primeiro Gre-Nal, era o Gre-Nal dele.
Correu para a copa ao fim do primeiro tempo. E confesso que vê-lo correr foi mágico. Voltou com uma cerveja, um refrigerante e dois cachorros-quentes de campo de futebol, pão cacetinho, uma linguiça e muita mostarda.  Comemos e ele conversava freneticamente sobre o jogo. Falava sobre a possibilidade de o Inter fazer mais, de fazermos uma goleada histórica no rico time do Grêmio. O segundo tempo começou como terminou o primeiro. Ele berrando e estampando a personificação da felicidade. Seus olhos transbordavam vida, era lindo de ver. Eram uns vinte minutos do segundo tempo e Fabiano decidiu o jogo, em 7 minutos marcou dois gols e a vitória virou goleada, 4 a 0. Homens desconhecidos abraçavam- se, alguns mais eufóricos choravam, meu pai veio na minha direção, seus olhos denunciando uma forte emoção e me abraçou forte. Senti seu frágil corpo desprender a mesma força que eu tinha guardada na lembrança. Abracei-o com a mesma intensidade, e aumentei a carga, e o medo de perdê-lo, no momento, apareceu forte. Uma lágrima correu sem que eu pudesse conter. Apertei com força, como se pudesse extrair aquela doença de seu corpo ou quem sabe pegar uma parte dela para mim e talvez pudéssemos viver os dois dividindo o fardo. Senti raiva daquela doença e do que ela estava fazendo com aquele que para mim era um homem intransponível, queria berrar, chorar, dizer o quanto eu o amava, mas penso que ele sabia de tudo isso. E ele abrandou o abraço, ambos viram as lágrimas nos olhos um do outro, mas como bons cavalheiros, ignoramos o fato. Ele abraçou minha cabeça e a forçou contra seu peito, e assim ficamos. Do alto dos meus quinze anos, cheio de vergonha, querendo ser homem, o que mais desejei naquele momento era voltar a ser criança. O Inter fechou o jogo em 5 a 2. Mas para nós o jogo encerrou nos 4 a 0, naquele abraço, o restante foi êxtase, como uma ressaca emocional que foi se curando até o apito do árbitro. Fomos abraçados para o carro. Entramos em silêncio. Quando chegamos em casa, ainda antes de entrarmos, ele parou na porta. Voltei a visualizar sua aparência frágil. Seu rosto voltou a ficar pálido. Olhou para mim, e por um instante por detrás de seus óculos, os olhos deixaram escapar uma faísca de alegria, um brilho especial, botou a mão em minha cabeça e disse:
- Obrigado pela tarde, pai te ama!
Aquele foi seu último Gre-Nal, e a última lembrança verdadeira que tenho de meu pai. Assim como naquele jogo, para ele não houve prorrogação.

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