terça-feira, 6 de outubro de 2015

Revitalização



             Foi com espanto que receberam a notícia: a vila seria desapropriada. O espanto, na verdade, era relativo. Um ano antes, figuras estranhas passaram a destoar do cenário habitual da pequena e esquecida vila de São Roque, com seus ternos alinhados e sapatos lustrados, apontavam para cima, para baixo, para a direita, para a esquerda, como se regessem uma sinfonia sem músicos. Cada gesto era intercalado por olhares alvoroçados para papéis que, com o transcorrer do tempo, irrompiam em maior número naquelas mãos limpas e intocáveis pelo areião bruto que se estendia pelas ruas, calçadas, casas, pés, mãos e rostos da vizinhança. Seu Dedé foi o primeiro a levantar suposições sobre as visitas:
- Isso aí, não é coisa boa, não. Ouvi dizer que na Alemanha foi assim também, mediam aqui, mediam ali, depois colocaram muro e pronto, todo mundo preso.
            Outros diziam:
- Que nada, isso aí é o governo que tá preocupado com a gente. Todo mundo vai te casa nova.
            Os mais alarmistas vociferavam:
- Eu vi isso na TV. Esses homens de terno chegam assim, de mansinho, quando vê, tão tomando conta de tudo.
            Entretanto, em meio a todo burburinho causado pelas visitas, foi no jornal que a coisa tomou forma. Era uma manhã de sábado como toda outra quando Seu Cristovão, que recebia o tratamento de Seu por ser o dono da principal venda da vila, anunciou aos berros, com o jornal na mão, a notícia: construiriam um shopping na vila.
            A notícia pegou a todos de surpresa, “um shopping, aqui?”. Em pouco tempo, o fato ganhou forma, corpo e, por fim, vida por entre as vielas alaranjadas de São Roque. Alguns temerosos, outros desconfiados, mas a maioria eufórica por aquilo que, segundo eles, transformaria a vida de todos.
- Um shopping aqui do ladinho de casa, já pensou? Fim de semana, poder ficar no ar condicionado, sentado naqueles bancos chiques, comendo sorvete. Vamos ser chiques, Seu Cristovão. Me vê meio quilo de coxa e um quilo de salsichão que vamos comemorar.- festejava Clotilde.
            Logo, as emissoras de tevê passaram a frequentar o local para reportagens e entrevistas. E, assim, os moradores se deram por conta do que haviam negligenciado na reportagem do jornal: o shopping seria mesmo construído ali, entretanto não seria com eles. Foi um pandemônio, os moradores iam em blocos ao mercado de Seu Cristovão, indagando o que seria de todos. O pobre homem, com lágrimas nos olhos, afirmava que não sabia nem mesmo o que seria dele. Recém havia investido o pequeno lucro do último ano na aquisição de uma máquina de assar frango, a primeira da história da vila, que havia vendido 34 frangos no primeiro fim de semana de funcionamento. O fato era que os moradores seriam transferidos para o outro lado da cidade, próximos de um bairro residencial de classe média, onde, com o dinheiro da indenização que receberiam, teriam casas com toda a estrutura necessária para viverem. O problema era que muitos dos que ali estavam moravam em residências delimitadas pelo grito e vontade. Com papel passado, eram poucos.
            Enquanto o tempo andava e a terra vermelha que cobria a vila molhava e secava, a questão virava tema central nas discussões midiáticas. Bartolomeu, filho de Lurdes, moradora do bairro, e que cursara, há dois anos, três cadeiras do curso de Direito, resolveu tomar a frente da união dos moradores e passou a ser figura recorrente na mídia. A mãe orgulhosa chamava a todos os vizinhos para assistirem o filho na televisão e colava na parede da sala todas as reportagens de jornal em que o filho era mencionado.
            Após um ano de discussões e pressão pública, um caso de assassinato aconteceu no bairro, criminosos sequestraram e levaram um casal para o interior da vila, sem piedade, assassinaram eles e queimaram os corpos. O caso chocou a todos da cidade, inclusive os residentes na vila São Roque, que exigiram policiamento e ação do poder público. Porém, no restante da população, a revolta gerou o sentimento que era mais do que na hora de acabar com aquela aglomeração. E foram às ruas exigirem a retirada daqueles casebres e uma revitalização urgente do local. E assim, assinou-se o decreto: as casas legalizadas seriam desapropriadas para a construção de um novo centro de compras que traria benefícios sem fins para a cidade. Quanto aos proprietários, seriam realocados em uma área do governo onde receberiam uma moradia digna.
            Foi assim que Seu Cristovão assistiu seu mercado ser destruído em três golpes da enorme máquina de aço; presenciou seus vizinhos ficarem desamparados; precisou se habituar com a casa nova, com a vila nova, com o pouco movimento no mercadinho, pois poucos moradores realmente possuíam casas regularizadas, com a venda da sua máquina de assar frangos e, depois, com a venda das poucas mercadorias que restavam.
            Sem o mercado, abriu mão do “Seu” e tornou-se cristovão, apenas mais um cristovão. No terceiro mês procurando emprego, conseguiu uma vaga nos serviços gerais do shopping que abriu.
Agora, vez ou outra, ele vai na sorveteria do shopping e pede um desses sorvetes enormes e leva para Clotilde. Hoje sua colega de serviço, ela faz questão de, todo domingo, após um longo dia de serviço, sentar em um banco, como se estivesse desfrutando daquele ambiente como os outros que passam com suas sacolas recheadas de roupas que valem todo o salário de um mês, sorrindo e agradecendo a existência daquele lugar. Antes de dar a primeira colherada, ela sempre sorri, olha para Seu Cristovão e diz:
- Eu não lhe disse, Seu Cristovão? Agora só falta ser chique.

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