quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Interpretação



O casamento ocorreu como todos os enlaces religiosos costumam ocorrer. Um rapaz, jovem e imprudente, conheceu uma moça linda e meiga. Ela, no princípio, disfarçou; ele, logo, partiu para o embate. Tomaram uma cerveja juntos. Ele disse que ela era linda, falava a verdade, nunca vira imagem tão bonita. Nos dias que se seguiram, sonhava com aqueles olhos grandes e boca cheia de lábios provocantes. Os cabelos claros formavam uma onda que contornava aquele lindo rosto. Não poderia viver sem ela. Seis meses e quinze encontros depois, pediu-a em casamento junto à família.
A festa foi aquele típico acontecimento social, entrada triunfante no salão, cumprimentos a todos, uma dança especial, um tio que bebeu demais e pegou o microfone para cantar, uma tia falando o quão vulgar era o vestido da noiva, e claro, a viagem de lua de mel com uma noite de núpcias que virou noite de sono devido ao cansaço.
Iniciaram a vida a dois em uma casa aconchegante, presente do pai da noiva. Foi na primeira semana que algumas coisas começaram a aparecer. Ele sentava no sofá aproximadamente 50% do tempo que estava em casa. Ela, mexia de forma irritante em todos os dedos dos pés enquanto assistia televisão. Ele deixava a toalha molhada insistentemente sobre a cama e ela conseguia achar insatisfação em todas as ações realizadas por ele. E assim terminam os casamentos.
A cada atitude incômoda, produziam um pigarro com a garganta de reprovação. Vieram os filhos, três, duas meninas e um menino. E os pigarros aumentaram. O tempo mostrou que os pigarros já não eram suficientes, veio os xingamentos e palavras ofensivas. Os filhos cresceram e as ofensas da mesma forma. Assim, a irritação tornou-se tanta que determinaram: não se falariam mais. Ninguém compreendia o porquê de ainda ficarem juntos, mas a mãe foi enfática: o que as pessoas iriam pensar? Ela, uma mulher de idade, desquitada? Por sua vez, o pai afirmava que não era homem de abandonar uma mulher.
Passaram a repreender um ao outro apenas com o olhar. O pai deixava o chinelo no meio da sala para deitar na cama, e a mulher parava na porta do quarto e apenas com um olhar demonstrava toda sua indignação.
O churrasco de fim de semana era insuportavelmente silencioso e cheio de olhares. Os filhos já não aturavam aquela situação.
- Mãe, isso não pode continuar. Você e o papai são adultos, devem resolver suas pendências como tais.
- Vocês são jovens demais para compreender a situação.
- Jovens? Mãe, já tenho 34.
- Você não entende. Um dia, vocês todos irão entender.
Entretanto, em uma quarta-feira, o pai chegou mais tarde de um jantar com os amigos. Decidiu tomar um banho antes de deitar e deparou-se com roupas íntimas da esposa no chuveiro. Mesmo irritado, tomou o banho e deitou-se silenciosamente. No dia seguinte, encontrou um bilhete no criado mudo. Nele dizia que a esposa cansara das toalhas e calçados atirados pela casa e que a última noite havia sido a gota da água, portanto não mais olharia para ele. Para facilitar as coisas, deixou um itinerário de locomoção dela pela casa com hora, minutos e segundos. Assim, não se encontrariam mais. O pai, ainda revoltado com as roupas íntimas no box, não só aceitou, como também fez o seu itinerário.
A partir daquele instante, não se encontravam mais. Os filhos não acreditavam nessa situação e pensavam que os pais não conseguiriam mantê-la. Organização, eis uma palavra importante em um caso como esse, e ela com certeza estava naquele lar. Os pais moravam na mesma residência, mas não se cruzavam um só instante do dia. Se um estava na cozinha, o outro estava na sala. Com o tempo, os filhos foram se acostumando com a situação, e os netos habituaram-se com a total falta de contato dos avós. E assim, todo domingo o almoço era, em um momento, com o avô, e em outro, com a avó. Todas as noites, antes de dormir, a filha mais velha olhava para o marido e perguntava como seus pais deixaram as coisas chegarem a tal ponto.

Na casa de seus pais, antes de dormir, a mãe desligava todas as luzes deixando o quarto em total escuridão. O bilhete era claro: não iriam mais se ver. Eram felizes. O segredo era a interpretação.

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